segunda-feira, 3 de junho de 2013

STOP DSM

 PRA ACABAR COM O DSM
A OBRIGAÇÃO A UMA REFERÊNCIA DIAGNÓSTICA AO DSM PREJUDICA A CIENTIFICIDADE ; OPERA À REVELIA DO TRATAMENTO PSÍQUICO ; TEM UM CUSTO ALTÍSSIMO  PARA OS ESTADOS; E PARALISA A PESQUISA E O ENSINO.
O « sofrimento psíquico » ultrapassa a definição habitual das doenças, pois pode tocar cada um. A Organização Mundial da Saúde o considera como uma prioridade. Mas a O.M.S. enveredou neste terreno a partir de um escolha  unívoca, considerando como um  avanço científico o manual da APA ( American Psychiatric Association ). Essa escolha exclusiva da O.M.S. leva o nome genérico de DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). A versão do DSM III estigmatiza os conflitos de interesse em psiquiatria, e é contemporânea dos incentivos a tratamentos comportamentalistas e dos TCC. E como esses métodos são aleatórios, eles participam da promoção de um indispensável complemento farmacológico. 
1.  Qual é o valor científico do DSM ?
O seu antepassado, o SNCD, é uma compilação empírica redigida em 1932 para o exército americano. Em 1948, a O.M.S. o usou para redigir a International Classification of Diseases que chega à sua décima versão (ICD 10 ou CIM 10 para a França). As diferentes versões do DSM foram redigidas desde 1952 pela American Psychiatric Association. Enquanto o DSM II levava em conta uma abordagem dinâmica da psicopatologia, o DSM III, publicado em 1980,  suprimiu todas as referências à psicánalise em nome duma total neutralidade teórica. Resultou disso uma metodologia descritiva, ignorando voluntariamente os conceitos psicológicos a partir dos quais se poderia ter elaborado uma classificação objetiva, clínica e scientífica dos grandes campos da psicopatologia. Existe numerosos sub-conjuntos do DSM. A metodologia deles sempre vai à contramão dos critérios de objetividade de quaisquer ciências da natureza, como daqueles de quaisquer ciências humanas. Pra que uma observação atende à cientificidade, precisa que isola invariantes latentes, determinismos que formam axiomas e destacam estruturas reduzidas. Esse procedimento se apoia sobre a observação de fatos, fora de qualquer preconceito. Se apoia também nos elementos adquiridos pela experiência que é a única a permitir que se verifique seu interesse diagnóstico e seu valor predicativo. É o contrário da metodologia do DSM, que não tem nenhum precedente em nenhuma ciência, a não ser nas classificações enciclopédicas (do tipo: Linné, Buffon, etc) que classificavam as espécies segundo caráteres distintivos, antes de se voltar para classificações comparativas que punham em evidência traços comuns às diferentes espécies. Na sua introdução, é verdade que o DSM se declara ideologicamente ateórico. Mas será possível em pesquisa ?
O DSM demostra em si que não, pois basta que um rol de « disfuncionamentos » manifestos seja estabelecido sem levar em conta as estruturas em que se inscrevem, ou basta que esses « disfuncionamentos » sejam desligados das circunstâncias subjetivas da sua emergência, para que a hipótese de uma causa orgânica logo se imponha. Essa concepção dum homem reduzido à máquina não encontrou até hoje nenhuma prova alegada pela experiência, inclusive nos trabalhos neurocientíficos mais difundidos. Ao contrário do DSM, os avanços científicos mais recentes na área da neuroplasticidade ou da epigênese revelam que não se pode mais opor causalidades psíquica e orgânica, já que a primeira exerce uma influência na construção da segunda. A possibilidade de poder prever algo se acha subvertida : não se usa duas vezes o mesmo cérebro. Mas o DSM, suprimindo a causalidade psíquica, impõe em consequência a causalidade orgânica. Essa escolha é talmente anticiêntifica que proibe quaisquer outras referências, e que o uso dele é imposto a todos os profissionais da saúde na codificação dos diagnósticos. A impossibilidade de recusar qualquer ponto de vista tem por consequência de excluí-lo da área da ciência (como o demostrou Karl Popper). Qualquer que seja a ideologia de cientificidade das terceira e quarta versões do DSM, a sua metodologia não o é.
  A segunda característica anticientífica da metodologia DSM é o fato que ele reúne estatísticas que não dizem respeito aos pacientes, mas à opinião duma parcela de psiquiatras. Não se trata de observações clínicas, mas da contagem dos pontos de vista, às vezes recolhidos de modo arbitrário. Esse método com aparência democrática nunca existiu na história das ciências. Um voto não pode servir de prova, e essa nomenclatura foi colocada sob a égide da doxa, como o demostra a sua legitimação pelo termo de consenso. É indício de popularidade, mas em nenhum caso de validade científica.
  Essas primeiras características não-científicas do DSM não se opõem ao seu interesse a nível epidemiológico, que pode entrar no quadro duma governança racional. Agora, se se procura usá-lo com esta finalidade, os profissionais não deveriam nunca, no entanto, serem obrigados a recorrer a ele com objetivo diagnóstico e pronóstico. Aliás, obrigação contrária à ética médica e à dos tratamentos psíquicos.
2.  Qual é a validade clínica desta metodologia ?
Esses repertórios de « distúrbios » e  « disfuncionamentos » só dão do sofrimento psíquico fotografias superficiais. Não se conheça, em nenhum ramo da medicina, um profissional da saúde que faria um diagnóstico de uma doença fiando-se às aparências ou à manifestação visível de um sintoma ! Já que a repetição de invariantes regulares é sistematicamente descartado, as descrições de superfície se multiplicam : a referência à Evidence Based Medecine, que procura privilegiar a prova com um intento de maior eficiência, revela o quanto seu objetivo, na exploraçao clínica, se reduz às evidênciais mais superficiais, ou vai misturando elementos heterogêneos, em particular elementos clínicos e morais : como o notou, por exemplo,  o Pr Misès a respeito das « perturbações do comportamento » : a « incivilidade » se tornando uma doença.
Disto resulta uma inflação de « distúrbios » que alimenta a ausência de cientificidade, já que esta última permite em geral de limitar a grande variedade de manifestações a alguns tipos clínicos, cujo número é reduzido. Desde a versão de 1952, o DSM passou de então 106 patologias repertoriadas a 410 « disfuncionamentos » hoje identificados na versao atual. Na próxima versão, em elaboração, o DSM V vai registrar pelo menos vinte categorias suplementares. No que diz respeito a patologia mental, térá construído um conjunto de « falsos positivos » cujos únicos beneficiários arriscam  ser os grandes grupos farmacêuticos.  Além disso, essa proliferação favorece o aparecimento de conceitos indefinidos que justificam práticas de tratamento perigosas e segregativas para as crianças.
Nas versões antigas do DSM, a histeria, categoria clínica perene, cuja presença foi atestada pela experiência desde a Antiguidade, foi simplesmente suprimida. Da mesma forma, a neurose não é mais homologada desde 1980,  e a homosexualidade teve que esperar 1987 pra não ser mais considerada como doença mental. E, de fato, a sexualidade, paradoxalmente, não tem mais estatuto depois dessa data…  Disso tudo se conclui que as estatísticas se referem à cultura americana, às normas e às modas dela, enquanto essas classificações de psicopatologia deveriam ter uma ambição internacional. A O.M.S., de fato, pensa impôr a aplicação do ICD no mundo inteiro daqui a alguns anos.
No que diz respeito agora ao futuro projeto do DSM V, ele inventa novas categorias de natureza exclusivamente dimensional (quantitativa), baseada na amplitude das manifestações consideradas como patológicas, como por exemplo o « disfuncionamento de hipersexualidade » ou o « disfuncionamento parafílico coercitivo ». Muito  mais preocupante ainda é a instauração de valores predicativos, prevendo os disfuncionamentos futuros. Assim, cada um pode ser potencialmente um futuro doente, e com isso ser susceptível de tratamento preventivo. Essa inflação dantesca vai poder atingir alturas vertiginosas com a invenção de « síndromes de risco », tal como o « síndrome de risco psicótico », que poderia, passando da prevenção à predição, prescrever sistematicamente psicotropes numa proporção consequente a adolescentes julgados atípicos. E isto, enquanto nenhum teste de terreno possa justificar a sua utilidade. Uma tal extensão da patologia poderia, aliás, chegar a ser considerada contrária aos Direitos do Homem.
3.  O DSM prejudica a saúde
Com um tal catálogo de critérios assim diversificados, daqui a pouco o psiquiatra não será mais necessário. E também não o serão mais nem o médico, nem o enfermeiro. O fármago poderá diretamente distribuir os psicotropes. E se os Estados fossem todos orientados nessa direção e política de saúde, qual seria o efeito disto ou a sua eficácia ?
Um diagnóstico DSM repertoria manifestações comportamentais sem a agudez de nenhuma estrutura psicipatológica de conjunto, e isso à revelia de toda a psiquiatria clínica. Cada comportamento corresponde a um tipo a assinalar(case à cocher) e não é mais que o sinal de uma « desordem » erguida ao  estatuto de entidade patológica inata. Acrescem-se noções tais como a de « doente difícil », ou de « não sujeição ao tratamento ». Enfim, certas categorias DSM (por exemplo, as codificadas de F20 a F31) vão com certeza serem colocadas ao serviço de transferências de competência em direção ao médico-social, esvaziando a psiquiatria pública e privada do seu contéudo. Já, em determinados serviços da região parisiense,e em nome da objetividade, o recolho de check-lists desde  a primeira entrevista destruiu a semiologia clínica, julgada subjetiva, assim como a abordagem dinâmica dos sintomas. O DSM suprime toda referência à causalidade psíquica ou histórica, sem deixar lugar aos eventos traumáticos da vida do paciente e de sua anamnese ; tudo é programado como se a condição humana podia ser medicalizada. A cura relacional, ou simplesmente a palavra são invalidadas como instrumentos terapêuticos, de tal maneira que os pacientes que podem ter uma necessidade urgente de se confiar arriscam escolher terapias não-científicas, até sectárias, com a caução involuntária dos Poderes Públicos.
É baseando-se nestes check-lists que a maioria dos pacientes são medicalizados abusivamente ou tempos demasiadamente longos. Como o mesmo sintoma se encontra em estruturas diferentes, que não apelam para a mesma conduta terapêutica, e como esse sintoma  é susceptível de ser recalcado por um tratamento farmacológico, a causa principal do sofrimento psíquico se torna irreconhecível e o paciente, incurável, apesar de ser demasiadamente medicalizado. Na medida em que aliviam os efeitos e não as suas causas, essas prescrições se auto-reconduzem com perigo, até a dependência, e mesmo a adição. Quando um protocolo de cura fracassa, em vez de ser questionado, cria-se uma nova categoria. De maneira que as terapias medicalizadas, no princípio bastante úteis, acabam por terem um resultado contra-produtivo. Ainda mais que os efeitos indesejáveis a longo prazo com remédios recentes são ainda desconhecidos e que os estudos previsionais entre benefícios e riscos são frequentemente sujeitos à questionamento.
Esse círculo vicioso, hoje, principia desde a infância. Para uma ação preventiva em psiquiatria da criança e do adolescente, os pedopsiquiatras, em maioria de formação analítica, querem colaborar com os pediatras e os responsáveis escolares, no intento de detectar os signos de sofrimento psíquico. E isso para evitar que um sofrimento latente evolua e se arrime em psicose, em neurose severa ou numa inadaptação irreversível. Ora, o DSM V por vir transforma essa prevenção em anticipação terapêutica : não se cura mais a criança pelo que ele pode sofrer presentemente mas pelo distúrbio que poderia um dia se manifestar nele. Essa «  predictabilidade » arrisca fechar o paciente num diagnóstico à vida, com medicação para psicopatologias que ainda não apareceram. Ao invés, quando o sofrimento psíquico é entendido, o tratamento evita a fixação numa patologia.
4.  O DSM orienta os ensinamentos do lado duma prática única
O sucesso do DSM não resulta de uma recepção positiva dele por parte dos profissionais de saúde. Pois, ao contrário, foi imposto de fora. Conheceu primeiro larga expansão graças às companhias de seguro e aos grupos de pressão que exigiram suas referências para os reembolsos, nos Estados Unidos e em certos países da Europa. As empresas farmacêuticas também são à origem de tábuas de adequação entre as categorias do DSM e a administração de remédios. Esses diferentes lobbies foram suficientemente potentes pra levar universidades cada vez mais numerosas a pôr o DSM no primeiro plano do ensino, assim colocado ao serviço de interesses classificatórios, ideológicos ou financeiros.
Os futuros clínicos foram formatados na ignorância da clínica clássica. No ensino, o requisito organicista elimina todos os pontos de vista que o precederam, operando uma ruptura que não genera o surgimento de nenhum novo paradigma. Até o fim dos anos setenta, prevalecia uma relativa unidade da psicopatologia. A psiquiatria clínica européia se era enriquecida graças aos avanços  da psicanálise e da psicologia. Esses intercâmbios interdisciplinares foram suprimidos a partir de 1980, e isso de maneira aleatória, já que o objeto da psicopatologia permanece o mesmo. Hoje, o conjunto do ensino da psiquiatria é majoritariamente tributária do DSM e da farmacologia. Apenas as UFR de psicologia ainda ensinam uma diversidade de pontos de vista. Mas ainda pra quanto tempo ? No entanto, essa relativa diversidade não tem nada de operacional, pois não são os psicológos que tomam as decisões terapeûticas. Além do mais, essa clivagem entre psicológos e psiquiatras alimenta uma  « guerra ideológica » inútil cujos pacientes e os orçamentos são tributários.
Não só o ensino médico se faz sob a formatagem única DSM, mas, além disso, o essencial do ensino post-universitário é assumido por laboratórios farmacêuticos. De forma que esta formação alimenta a proliferação das prescrições de remédios, já que toda outra orientação de pesquisa é proscrita.
Enfim, um lobbying oculto, jamais discutido democraticamente, obriga os pesquiadores à publicar em revistas ditas qualificantes, muitas vezes anglo-saxonas, de mesma orientação, se pretendem assumir um dia cargos universitários. A CFTMEA francesa já contrariou a carreira de certos universitários impedindo-os de publicar em revistas anglo-saxonas, sob a alegação de « falta de linguagem comum ».
5.  A orientação imposta pelo DSM custa  caro aos Estados
As escolhas da O.M.S. têm notáveis repercussões sobre os sistemas de saúde dos Estados, e acarretam decisões caríssimas. A todos os níveis da saúde mental, o DSM se tornou o instrumento contável de orçamentos administrados pelos gestionários que organizam a saúde a partir de seus objetivos financeiros. Os problemas de saúde ficam não resolvidos e afinal têm um custo mais elevado. Commissões desconhecidas do público tomam decisões nesta base, e como a referência delas é o DSM, elas privilegiam os tratamentos farmacológicos (e até cirurgicais), apoiando-se no empobrecimento, até mesmo na destruição da organização por setores da psiquiatria que articula o intra e o extra hospitalar. O DSM tornou-se o cavalo de Tróia da indústria farmacêutica na prática médica quotidiana e principalmente a dos médicos generalistas, que prescrevem 80% dos psicotrópicos. Essas orientações terapêuticas generam um custo econômico bastante pesado pra os Estados e os sistemas de solidariedade como a Segurança Social. O custo não é simplesmente a transferência de fundos ao benefício da indústria farmaceûtica. Existe também um uso “médico-econômico”. Em função da codagem DSM, “taxas de pacientes” assim como “intensidade de tratamentos”são repertoriados com antecedência, e impõem limitações terapeûticas.
É possível ter uma idéia da importância dos custos gerados pelos diagnósticos DSM examinando as diferenças de prescrição em psiquiatria da criança entre os países que se conformam ao DSM e aqueles em que um outro ponto de vista permaneceu majoritário : na França, quase 20 000 crianças tomam Ritaline, o que é longe das 55 000 crianças inglesas, e sobretudo dos 3 milhões de canadenses e dos 7 milhões nos USA. Não espanta que existem laços de  interesses financeiros entre os comitês de expertise do DSM IV e a indústria farmaceûtica, já muitas vezes assinalados, se levamos em conta que os remédios psicotrópicos representam um mercado extremamente lucrativo. Nos USA, em 2004, os anti-depressores geraram 20,3 bilhões de dólares de lucro, os anti-halucinatórios, 14,4 bilhões. Certas categorias clínicas se ajustam de perto às indicações de novas moléculas, prefigurando uma classificação farmacológica « sur mesure », moldada nas exigências do marketing. Uma tal coincidência entre categoria clínica e efeitos das moléculas só pode favorecer uma quimioterapia de massa.
Ao contrário, se, de um ponto de vista financeiro, os tratamentos que privilegiam a relação intersubjetiva parecem primeiro mais caros em infraestruturas e em pessoal qualificado, demostram serem mais econômicos, a termo, além de conservar aos tratamentos  a sua dimensão humana.
É possível  acabar com a  hegemonia nefasta desta nomenclatura.
A O.M.S. e a W.P.A (World Psychiatric Association) organizaram em London em 2001 um simpósio sobre as classificações internacionais. A dificuldade dos debates levou a O.M.S. a decretar um moratório sobre as revisões do DSM V e do ICD 10, até esse ano.  Na realidade, a valsa das revisões do DSM foi devida à  única iniciativa da Associação psiquiátrica americana, e não dos profissionais, como previsto incialmente. Enquanto isso, o uso do DSM tem consequências diárias, que são visíveis tanto em certos relatórios do INSERM quanto em decisões legislativas que dizem respeito à saúde mental, ou ainda mais nos efeitos segregativos e securitários que dificultam não só o tratamento, como legitimam uma governança política do humano, desde a infância. Desde já, o DSM é usado também diante dos tribunais e a sua aparência objetiva é tanto mais perigosa quanto se esconde atrás do discurso da « ciência ».
A experiência mostrou que os atores da saúde podiam muito bem fazer recuar os efeitos da ideologia DSM. Por exemplo, o sucesso do abaixo-assinado “Pas de Zéro de conduite pour les enfants de trois ans”, (contra a expertise dos comportamentos em crianças de três anos), assinado por mais de 200 000 pessoas, depois da pesquisa do INSERM sobre « distúrbios nos comportamentos », obrigou o INSERM  a relativizar  estudos dados até então como científicos. Da mesma forma, o « Appel des Appels » capitalizou críticas relativas às nomenclaturas como também as da saúde, do ensino, ou da pesquisa, abarcando também a inciativa de « Sauvons la Clinique ». Outras respostas face aos perigos atuais já foram formalizados, ou o são, como « O collectif  des 39 contre la nuit sécuritaire » que  reuniu, em outubro de 2010, mais de mil pessoas em Villejuif.
Já em 2003, em Montpellier, os Estados gerais da Psiquiatria tinham permitido uma tomada de posição geral, em relação ao DSM IV, de grande parte das associações psiquiátricas, de quase a totalidade das associações psicanalíticas e do SIUERRPP, sindicato que reúne a maioria dos professores-pesquisadores-profissionais em psicopatologia clínica. A maior parte das sociedades psicanalíticas francesas assinaram naquela ocasião uma declaração na qual propunham « trabalhar em comum com os profissionais da psiquiatria para a construção de uma referência psicopatológica mais condizente com a realidade clínica do sujeito ». Como o observa aquela declaração, o DSM confunde o doente  com a doença. Uma prática que não leva em conta a subjetividade do inconsciente e do conflito psíquico, conceitos que demostram que os nossos pacientes têm uma história e um universo relacional que fazem parte integrante da clínica que apresentam.
Queremos promover positivamente uma clínica da subjetividade.
O número  de assinantes deste manifesto constitui uma expertise amplamente tão pertinente quanto  as estatísticas da A.P.A.. Consideramos que – se é ainda  legitímo fazer novas hipóteses, como a do DSM -, esta nomenclatura se é imposta por meios exteriores à pesquisa, e ela dificulta o curso habitual dos intercâmbios científicos.
1.  Pensamos que os clínicos atentos ao sofrimento psíquico e a seu tratamento se acham hoje confrontados com um problema suplementar devido ao fato de impôr esse pensamento único, aparentemente consensual, e ao seu uso abusivo e perigoso nas decisões terapeûticas, gestionárias e políticas. Pensamos também que se deve reduzir a inflação perigosa do número em expansão das categorias patológicas. Deve-se retomar o caminho da clínica que se era construída o longo de vários séculos graças aos intercâmbios da psiquiatria, da psicologia, da psicanálise e da antropologia.
 2. É preciso mandar parar as pressões administrativas sobre os clínicos, pressões que, sob a alegação de exigências contáveis, os dictam a sua conduta terapeûtica. Será que não é tempo, por exemplo, de tomar posição contra a V.A.P. (Valorazação da Atividade em Psiquiatria) ou então proceder a recusas de cotação (ou então fazer cotação F99 -) ?
3. Deve-se restabelecer no seu direito uma metodologia científica respeitando os pontos de vista contraditórios. Aliás, exigimos um restabelecimento da pluralidade dos pontos de vista doctrinais no ensino, e a libertação com relação ao DSM na pesquisa e nas revistas qualificantes. A obrigação duma « linguagem DSM », duma linguagem psiquiátrica  única, não deve mais servir de critério para publicar em revistas internacionais. Apenas o objeto da pesquisa deve entrar em conta. A pluralidade das referências conceptuais deve ser  respeitada e promovida. O DSM não é e não pode ser uma referência obrigatória e exclusiva, servindo  de instrumento de normalização das práticas e das condutas das populações. Precisa estabelecer uma transparência sobre a nomeação dos membros de evaluação das comissões deliberativas nessa área.
4. Existe desde já outras classificações que o DSM. A existência delas deve ser validada e ensinada. Entre elas, algumas já foram reconhecidas, tal como a CFTMEA, para as crianças e os adolescentes, que foi várias vezes utilizada em estudos epidemiológicos, e aliás inclui um quadro de equivalência com a CIM 10. Paralelamente, a utilidade duma classificação adaptada à clínica vai ser debatida e também encarados  os seus fundamentos.
5. É necessário distinguir as necessidades das problemáticas específicas, que são hoje frequentemente confundidas ou misturadas. Os critérios úteis não são os mesmos conforme se trata :
·         das administrações ;
·         de pesquisas epidemiológicas e de orientações em saúde pública ;
·         de prática clínica e terapeûtica ;
·         e enfim de pesquisa e de ensino.
A retomada à uma elaboração científica não significa um retrocesso ao passado. Exige pelo contrário de levar em conta, pra melhor integrá-las, as inovações da psicofarmacologia e das neurociências, que permitem diferenciar melhor as mediações orgânicas da causalidade psíquica. Trata-se ainda menos dum retorno à nosografia clássica que se deve levar em consideração uma clínica comparativa integrando dados novos de outras culturas, da mesma forma que se deve proceder à evaluação das modificações nos modos de vida que fazem aparecer manifestações simtomáticas mais evidentes que no passado. Tais estudos hão de permitir que se fundamentam critérios clínicos universalmente válidos.
Obras de referência :
Allen, Frances, « À propos des 19 "propositions" du DSM V », La lettre de Psychiatrie Française, N° 194, sept 2010).
Bazalgette, Gérard, La tentation du biologique et la psychanalyse. Le cerveau et l’appareil à penser, Toulouse, érès, 2006
Besse, A. « L’AFPEP et son action internationale », Bulletin de l’AFPEP, janvier 2011
Cosgrove, L. ; Krimsky, S. ; Vijayaraghavana, M. ; Schneider, L. “Financial ties between DSM-IV panel members and the pharmaceutical industry”, Psychotherapy and Psychosomatics, vol. 3, University of Massachusetts, avril 2006, traduction française : « Liens d'intérêts financiers entre comité d'experts du DSM-IV et industrie pharmaceutique », José Morel Cinq-Mars, Tristan Garcia-Fons et Francis Rousseau).
Decorpaliada, Marco, Shizométrie, petit manuel de survie en milieu psychiatrique EPEL 2010, Gori R. ; Del Vogo. M.-J. La santé totalitaire, Paris, Denoël, 2005
Gori, R. ; Del Vogo, M.-J. Exilés de l’intime, LA médecine et la psychiatrie au service du nouvel ordre économique, Paris, Denoël, 2005
Gori, R. De quoi la psychnalyse est-elle le nom ? Paris, Denoël, 2010
Kirk, S. ; Kutchins H. Aimez-vous le DSM ?, le triomphe de la psychiatrie américaine, Synthélabo, 1998.
Lussier, Martine, Le travail du deuil, Paris, Puf, Le fil rouge, 2007.
Roudinesco E. Pourquoi la Psychnalyse Paris, Fayard 1999
Kernberg, Otto F. Les troubles graves de la personnalité : stratégies thérapeutiques, Paris, Puf, 1989.
Lane, Christopher, Comment la psychiatrie et l’industrie pharmaceutique ont médicalisé nos émotions, Paris, Flammarion, 2009 sur la « fabrication » des dernières catégories).
Malaval, J.-C. « Limites et dangers des DSM », L’évolution psychiatrique, 68, 2003, p. 39-61
CLASSIFICACÕES que não respondem aos critérios DSM :
- Classificação do Pr. Misès : C.F.T.M.E.A. édition CTNERHI 2002
- O P.D.M. americano : Interdisciplinary Council of Developmental & learnings disorders 2006

- O.P.D. alemão : Hogrefe & Huber 2000.

sábado, 25 de maio de 2013

DSM 5

Acordei doente mental
A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”
ELIANE BRUM

Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
Twitter: @brumelianebrum  

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: oDSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”. 
A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro. 
Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?  

  • Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável. 
O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog noHuffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez pioresmudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta aoThe New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.  
Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis". 
A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.  
Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.
Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.
A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.
A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes. 
Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios. 
Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes. 
Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo. 
E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.
  

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

O Doping das Crianças

ELIANE BRUM - 25/02/2013 10h33 - Atualizado em 26/02/2013 15h23

O Doping das Crianças
O que o aumento do consumo da “droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?
ELIANE BRUM




Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
Twitter: @brumelianebrum  

Um estudo divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da obediência”.  
O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo. 
A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8% . Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez; interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.  
Um parêntese. A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.
Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:
- Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.  
O documento pode ser lido na íntegra aqui.
Além do questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados “diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de “método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira? 
A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas” inquestionáveis. 
Na realidade, os questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa. 
saiba mais:
1) A medicina e a definição da “normalidade”
A história da medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida. Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação, higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças. Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito interessante, intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente” (leia aqui). “Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (...) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”   
A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios. É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É assim que se medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a existência de crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios e preconceitos que regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em que esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se científico ou preconceituoso, pela população. A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável por sua resolução. A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo normativo”. 
Em “Os Equívocos da Infância Medicalizada” (leia aqui), Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em educação,
explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”. 
2) A escola e o ciclo da medicalização da infância
O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado. Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.
Esta é a análise da psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo. No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância: Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no campo do saber médico-psiquiátrico. “As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança, fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas instituições de assistência à infância”, diz. “A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do momento em que a criança e sua família são capturadas, não conseguem mais sair.”
É corriqueiro, segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência da escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um acompanhamento’”.
A psicóloga Renata Guarido, que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina passou a determinar quem era “educável ou ineducável” (leia aqui): “Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e de ‘treinamento’”.
Em sua análise, Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica. Também já faz parte da rotina professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia. “Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (...) Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.
3) A criança como objeto, não mais como sujeito 
Entre as principais críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e está inserido num contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido pela escola – e também pelos dispositivos de vigilância do Estado. O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.
Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”. Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (...) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (...) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”. Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não Nos Invejam Mais”, que pode ser lida aqui.
Em artigo já citado, Renata Guarido mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas até mesmo o seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em larga escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que o lugar do ato educativo seja redefinido.”
Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani, professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um caso concreto (leia aqui). Elas afirmam : “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.
4) Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização prospera
Não é apenas a escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma vida. Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito Refém do Orgânico” (leia aqui), Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnóstico que profere. Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos história”.
Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela reproduzido: “A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões, na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem furos”.
Não são apenas os professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil lidar com uma “doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento. “Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga da obediência’”, afirma Margareth. “Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos eletrônicos.” 
5) O marketing da indústria farmacêutica
O transtorno de hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o diagnóstico. Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem. Neste sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.
“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico, guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há mais uma etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”  
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Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de espanto de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está naturalizada na sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria diferente? Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.
Ninguém sabe quais serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente drogada ainda é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os adultos?    

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)